Passado o momento eleitoral em nosso país, no qual constatamos polarizações, mentiras, desconstruções e divisões, precisamos caminhar. A divisão perpassou a sociedade atingindo comunidades e famílias. E o pior, divisão em nome da fé, de valores, de religião. Mas agora a vida continua e precisamos de uma profunda reflexão. Nesta reflexão nos ajuda o Papa Francisco, com sua Carta Encíclica Fratelli Tutti (FT).
Diz o Papa na FT, 203: O diálogo social autêntico pressupõe a capacidade de respeitar o ponto de vista do outro, aceitando como possível que contenha convicções ou interesses legítimos. A partir da própria identidade, o outro tem algo para dar, e é desejável que aprofunde e exponha a sua posição para que o debate público seja ainda mais completo. Sem dúvida, quando uma pessoa ou um grupo é coerente com o que pensa, adere firmemente a valores e convicções e desenvolve um pensamento, isto irá de uma maneira ou outra beneficiar a sociedade; mas só se verifica realmente na medida em que o referido desenvolvimento se realizar em diálogo e na abertura aos outros. Com efeito, num verdadeiro espírito de diálogo, nutre-se a capacidade de entender o sentido daquilo que o outro diz e faz, embora não se possa assumi-lo como uma convicção própria. Deste modo torna-se possível ser sincero, sem dissimular o que acreditamos, nem deixar de dialogar, procurar pontos de contato e sobretudo trabalhar e lutar juntos. O debate público, se verdadeiramente der espaço a todos e não manipular nem ocultar informações, é um estímulo constante que permite alcançar de forma mais adequada a verdade ou, pelo menos, exprimi-la melhor. Impede que os vários setores se instalem, cômodos e autossuficientes, na sua maneira de ver as coisas e nos seus interesses limitados. Pensemos que as diferenças são criativas, criam tensão e, na resolução duma tensão, está o progresso da humanidade.
No número 207, o Papa faz algumas perguntas: É possível prestar atenção à verdade, buscar a verdade que corresponde à nossa realidade mais profunda? Que é a lei sem a convicção, alcançada através dum longo caminho de reflexão e sabedoria, de que cada ser humano é sagrado e inviolável? Para que uma sociedade tenha futuro, é preciso ter amadurecido um vivo respeito pela verdade da dignidade humana, à qual nos submetemos. Então abster-se-á de matar alguém, não apenas para evitar o desprezo social e o peso da lei, mas por convicção. É uma verdade irrenunciável que reconhecemos com a razão e aceitamos com a consciência. Uma sociedade é nobre e respeitável, nomeadamente porque cultiva a busca da verdade e pelo seu apego às verdades fundamentais.
Mais adiante o Papa diz: Numa sociedade pluralista, o diálogo é o caminho mais adequado para se chegar a reconhecer aquilo que sempre deve ser afirmado e respeitado e que ultrapassa o consenso ocasional. Falamos de um diálogo que precisa de ser enriquecido e iluminado por razões, por argumentos racionais, por uma variedade de perspectivas, por contribuições de diversos conhecimentos e pontos de vista, e que não exclui a convicção de que é possível chegar a algumas verdades fundamentais que devem e deverão ser sempre defendidas. Aceitar que há alguns valores permanentes, embora nem sempre seja fácil reconhecê-los, confere solidez e estabilidade a uma ética social. Mesmo quando os reconhecemos e assumimos através do diálogo e do consenso, vemos que estes valores basilares estão para além de qualquer consenso, reconhecemo-los como valores transcendentes aos nossos contextos e nunca negociáveis. Poderá crescer a nossa compreensão do seu significado e importância – e, neste sentido, o consenso é uma realidade dinâmica –, mas, em si mesmos, são apreciados como estáveis pelo seu sentido intrínseco (FT, 211).
O Papa propõe uma nova cultura. A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro na vida. Já várias vezes convidei a fazer crescer uma cultura do encontro que supere as dialéticas que colocam um contra o outro. É um estilo de vida que tende a formar aquele poliedro que tem muitas faces, muitos lados, mas todos compõem uma unidade rica de matizes, porque ‘o todo é superior à parte’. O poliedro representa uma sociedade onde as diferenças convivem integrando-se, enriquecendo-se e iluminando-se reciprocamente, embora isso envolva discussões e desconfianças. Na realidade, de todos se pode aprender alguma coisa, ninguém é inútil, ninguém é supérfluo. Isto implica incluir as periferias. Quem vive nelas tem outro ponto de vista, vê aspetos da realidade que não se descobrem a partir dos centros de poder onde se tomam as decisões mais determinantes.
Nossa ação evangelizadora não pode descurar o momento político que vivemos este ano, com tantas implicações; o caminho sinodal com a verdadeira escuta é o instrumento adequado para enfrentarmos os desafios, em termos de relacionamento humano, que a campanha política de 2022 nos trouxe. Mãos à obra. Não deixemos que nos roubem a esperança.
Dom Moacir Silva
Arcebispo Metropolitano
Boletim Informativo Igreja-Hoje
Novembro/2022