O Documento de Aparecida (DAp) apresenta um vigoroso convite para a missão entendida como comunicação de vida plena, o que é uma grande novidade.
A Palavra ‘vida’ aparece 631 vezes no documento, muito mais do que qualquer outra expressão, incluindo Jesus Cristo, Igreja, e discípulos e missionários. O título das três partes do Documento começa com a palavra ‘vida’: 1. A vida de nossos Povos; 2. A vida de Jesus Cristo nos discípulos missionários; 3. A vida de Jesus Cristo para nossos povos. É razoável que assim tenha acontecido para ser coerente com o tema da V Conferência, onde o discipulado e a missão, em definitivo, têm sentido para que nossos povos, n’Ele, tenham vida.
Trata-se de uma vida plena “n’Ele”. Por isso, a noção de vida é essencialmente cristológica. Só se compreende n’Ele e a partir d’Ele como sua fonte e modelo. Ele e a vida, de modo inseparável, são o eixo fundamental de Aparecida, ou melhor, Ele como fonte e modelo da verdadeira vida.
O grande eixo do tema de Aparecida é ‘para que tenham vida’. O “para que” indica a finalidade de toda a missão da Igreja. A proposta de Jesus Cristo a nossos povos, o conteúdo fundamental da missão, é a oferta de uma vida plena para todos (DAp 361). Por isso, a Igreja tem como missão própria e específica comunicar a vida de Jesus Cristo a todas as pessoas (DAp 386). Uma vez que nós, os cristãos, somos portadores de boas notícias para a humanidade e não profetas de desventuras (DAp 30), se quer mostrar que a relação com Jesus Cristo não nos faz menos felizes, não nos exige que renunciemos a nossos desejos de plenitude vital, mas sim nos ajuda a desenvolvermos plenamente e a desfrutar melhor da existência, porque “Ele ama também nossa felicidade nesta terra” (DAp 355). É uma afirmação que parece óbvia, mas que poucas vezes aparece explicitamente na pregação e pode estar ausente das convicções reais de muitos crentes.
Trata-se de uma vida que não pode fechar-se no sujeito, mas que por sua própria natureza tende a comunicar-se aos outros (missionários). A missão se apresenta como uma consequência direta de uma existência bem vivida. Tomando este ponto de partida positivo diante dos anseios humanos, se quer mostrar que uma vida digna e feliz não se realiza no isolamento e na comodidade individualista. Se recorda que uma lei da vida é que a vida cresce na medida em que ela é comunicada por amor (cf. DAp 358-360). A relação pessoal com o Cristo nos capacita para encontrar uma felicidade mais plena (discípulos) para encontrar o sentido mais profundo de tudo o que nos acontece, também nos momentos difíceis: “Jesus Cristo nos oferece muito, inclusive muito mais do que esperamos” (DAp 357). Por outro lado, o seu “seguimento é fruto de uma fascinação que responde ao desejo de realização humana, ao desejo de vida plena” (DAp 277).
Além do texto bíblico de Jo 10, 10 (“Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância”) que expressa a vontade de Cristo de trazer-nos vida em plenitude, se menciona 1Tm 6,17 (“…Deus que provê abundantemente de tudo para nosso bom uso”), para indicar que essa vida inclui o legítimo desfrute das coisas deste mundo (cf. DAp 355). Este sentido integrador se desenvolve imediatamente a partir de uma citação do Discurso Inaugural de Bento XVI (DI, 4), dizendo que a vida nova de Jesus Cristo desenvolve em plenitude a existência humana “na dimensão pessoal, familiar, social e cultural, com o qual Jesus Cristo se manifesta como nosso Salvador em todos os sentidos da palavra” (DAp 356).
A reflexão da V Conferência do Episcopado da América Latina e do Caribe, sintetizada no DAp procura mostrar também a profunda unicidade que existe entre a amizade com Jesus Cristo e o ideal humano de felicidade e plenitude vital. Se muitas vezes se criou uma prejudicial dialética entre a fé e a nossa vida terrena, em Aparecida se sustenta que “todo sinal autêntico de verdade, bem e beleza na aventura humana vem de Deus e clama por Deus” (DAp 380). Esta convicção deveria incorporar-se explicitamente no anúncio do Evangelho, e transfigurar-se na pregação, porque “a proposta de Jesus Cristo a nossos povos, o conteúdo fundamental dessa missão, é a oferta de vida plena para todos. Por isso, a doutrina, as normas, as orientações éticas e toda a atividade missionária das Igrejas, deve deixar transparecer essa oferta de vida mais digna, em Cristo, para cada homem e cada mulher da América Latina e do Caribe” (DAp 361).
Vivamos intensamente o Mês Missionário, lembrando que “Jesus Cristo é missão”.
Dom Moacir Silva
Arcebispo Metropolitano
Boletim Informativo Igreja-Hoje – Edição N. 349
Outubro/2021