A Palavra viva

Estamos vivendo o Mês da Bíblia e, no último domingo, o Domingo da Palavra, aqui no Brasil. Um momento rico da animação bíblica da pastoral.

Se a Bíblia não for – como, de fato, não é – um amuleto ao qual se recorre rigidamente ou como um dos muitos volumes que estão parados nas prateleiras de nossa biblioteca, ela se torna viva para aqueles que dela se aproximam. Ela é ativamente eficaz e concede tudo aquilo que diz, de maneira semelhante ao que acontece nos Sacramentos, que realizam aquilo que expressam. A Escritura não é petrificada, imóvel, sem vida, como se estivesse congelada; ela se torna Palavra viva quando é colocada em seu ambiente ideal, isto é, a Tradição e a comunidade, sob a guia do Espírito Santo. Poderíamos simplesmente afirmar que, estando na Igreja, a Escritura se torna vivificante, isto é, consegue dar a verdadeira vida, iluminando e fortalecendo a existência pessoal, comunitária e social dos fiéis. A Palavra de Deus, que contém o próprio Jesus no centro, como sua fonte e seu fim, adquire toda a sua força e capacidade de iluminar os fiéis quando é proclamada na presença de Jesus, na Eucaristia e, de modo mais geral, em todos os Sacramentos, que são sinais poderosos do encontro com Cristo. De fato, a proclamação da Palavra tem seu lugar privilegiado na Celebração Eucarística e na Liturgia.

Também é importante fazer uma reflexão prática essencial para o âmbito mais pessoal. Cada um de nós deve refletir sobre o uso que se faz das Escrituras, muitas vezes instrumentalizada e submetida àquilo que nós queremos expressar: um uso muitas vezes crítico ou destinado a manifestar o desejo da superioridade sobre os outros, sem qualquer misericórdia e sem uma adesão real ao significado mais profundo do texto. Evidentemente, em face de uma reflexão séria, o cristão deve perceber que não pode privar a Escritura do seu verdadeiro significado, aprisionando-a em propósitos pessoais obscuros. Devemos permitir que a Escritura se torne, para nós e para os que se aproxima dela, pão vivo que alimenta; tornar-se “espiritualidade”, vida interior, motivação; uma Escritura que deixamos livre para trabalhar sabiamente, sabendo que é capaz de criar em nós uma nova mentalidade, um novo modo de ver o mundo, isto é, em outras palavras, a conversão. Não se trata de meras elucubrações mentais, sonhos, aspirações piedosas que, quando vão bem, permanecem em um âmbito meramente teórico, com o único resultado de nos fazer sentir melhor do que os outros.

O Papa Francisco tem evidenciado, inúmeras vezes, o risco de julgamento que nos coloca como juízes superiores nas relações com a irmã e com o irmão que está ao nosso lado. Em 23 de junho de 2014, em sua homilia durante a Missa em Santa Marta, ele disse: “É por isso que quem julga erra, simplesmente porque toma um lugar que não é seu. Mas não apenas erra, como também confunde. Fica tão obcecado com o que quer julgar, com tal pessoa – tão, tão obcecado! – que aquele cisco não o deixa dormir! ‘Mas eu quero tirar esse cisco do seu olho’, diz… E não percebe a trave que tem. Confunde: acredita que a trave é o cisco. Confunde a realidade. É fantasioso. Quem julga se torna um derrotado, acaba mal, porque a mesma medida será usada para julgá-lo. O juiz que erra seu lugar, porque toma o lugar de Deus – soberbo, autossuficiente – aposta em uma derrota. E qual é a derrota? A de ser julgado com a medida com que julga”. Podemos dizer que o caminho prático, existencial e espiritual do Documento conciliar Dei Verbum, em âmbito mais pastoral, tem como finalidade precisamente o caminho do fiel ao seu lado e rumo a Ele que é o único que lhe pode dar a vida, a luz e a graça de poder olhar com olhos novos para si mesmo e para os outros.

Deixemos a Palavra de Deus, contida na Escritura, orientar, questionar, iluminar, conduzir e impulsionar a nossa vida, conduzindo-nos à verdadeira conversão do coração. (Cf. Cadernos do Concílio, vol. 5. p. 23-24).

Dom Moacir Silva
Arcebispo Metropolitano

Boletim Igreja-Hoje
Setembro 2023

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