A santa entre sua gente: os 65 anos da Paróquia de Santa Maria Goretti

A Praça de São Pedro se encontrava repleta de fiéis oriundos de diversas partes do mundo naquele dia 24 de junho de 1950. Pela primeira vez na história da Igreja uma canonização se realizava na parte externa da Basílica a fim de comportar todos os que desejassem assistir ao rito que elevaria a menina Maria Goretti à honra dos altares.

Na Itália, no fim do século XIX, eram numerosas as pessoas que viviam desamparadas e na miséria, o que as obrigava a migrar em busca de oportunidades nas lavouras em todo o país. Todavia, essas populações carentes eram norteadas pela fé católica, disseminada e enraizada na cultura italiana. A família de Maria Goretti vinha de uma comuna da região central e vivia nesse contexto de pobreza e intenso trabalho. Quando já morava em Nettuno, ao sul de Roma, a menina, aos 12 anos, era órfã de pai e responsável pelo cuidado de sua casa e de seus irmãos menores, visto que sua mãe e suas irmãs se empregavam no labor do campo.

Foto: Assessoria de Imprensa da Arquidiocese de Ribeirão Preto

Aproveitando-se de sua vulnerabilidade, Alessandro Serenelli, vizinho da família, assediou-a e tentou violentá-la. Diante da pronta recusa da menina, que afirmava que não desejava entregar-se ao pecado por seu amor a Cristo, Serenelli lhe desferiu 14 facadas. Ela, ainda em seu leito de morte, perdoou seu assassino e desejou-lhe a conversão.

A história de Maria Goretti se difundiu e se popularizou, de modo que a devoção a ela crescia não somente na Europa, mas também nas Américas. No ano de sua canonização, em que os católicos celebravam as virtudes e o martírio da menina, estava presente em Roma Dom Luís do Amaral Mousinho, à época bispo de Cajazeiras, na Paraíba. Logo depois, em 1952, ele foi transferido para a Diocese de Ribeirão Preto, na qual assumiu como seu 3º bispo diocesano.
Ao tomar conhecimento da realidade eclesial da cidade episcopal, Dom Luís preocupou-se com a situação do bairro denominado Vila Virgínia: habitado majoritariamente por operários, sua população carecia de planejamento e não tinha amparo municipal, isto é, não dispunha de saneamento – água e esgoto –, calçamento nas ruas, tampouco transportes. Seus moradores viviam com extremas necessidades e, por isso, o bispo argumentava que “devemos, enquanto nos for possível, minorar-lhes os sofrimentos decorrentes dessa falta de assistência” (DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 01/11/1952).

Dom Luís do Amaral Mousinho. Fonte: Arquivo Metropolitano.

Havia, no mencionado bairro, uma pequena capela erigida em 1928 na qual os missionários claretianos da Paróquia Nossa Senhora do Rosário, na Vila Tibério, prestavam assistência religiosa. Dom Luís decidiu, então, iniciar a construção de uma igreja que pudesse dignamente atender o bairro e delegou aos padres diocesanos Horácio Longo e David Picão a responsabilidade pela formação da comunidade. Ficava-lhe evidente a semelhança do modo de vida dos habitantes da Vila Virgínia ao de Santa Maria Goretti, à qual o bispo elegeu como padroeira da nova igreja.

A escolha da referida santa contribuiu para que os habitantes se empenhassem no novo projeto: em vida, ela padeceu na pobreza assim como eles e, mesmo com pouca idade, professou sua fé com sua própria vida. Desse modo, chamavam-na de santinha e de menina, o que motivava uma relação de proximidade com a padroeira. Famílias abastadas da cidade também apoiaram a ideia da nova igreja e formaram, junto com habitantes do bairro, uma comissão responsável por coordenar os trabalhos e levantar fundos para a construção. Compreendendo a importância e a benignidade dessa união entre os grupos sociais, escreveu Dom Luís: “Esse templo será erguido com o sacrifício dos pobres, com a generosidade daqueles aos quais sorriu a sorte, com a dedicação de almas esquecidas de si próprias em prol da coletividade” (DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 12/12/1953).

No contexto do desenvolvimento urbano de Ribeirão Preto na década de 1950, as disparidades sociais entre o centro e a periferia eram descomedidas. A instalação de uma igreja – que depois se tornaria matriz da paróquia – traria visibilidade ao bairro, de modo que a população que lá habitava passaria a ter maior amparo material por parte do governo municipal, bem como poderiam participar ativamente dos sacramentos e eventos eclesiais.
Enquanto a comunidade se preparava para o início da construção, o trabalho pastoral foi sendo desenvolvido. A partir de 1952, todos os domingos passaram a ter duas missas e catequese para as crianças, mesmo com a precária estrutura da capela. Foi realizada a Semana Eucarística na Vila Virgínia no mencionado ano, com grande participação popular. A relevante da obra que nascia unia as esferas eclesiástica e civil, como se pôde ver na festa de Santa Maria Goretti, que anteriormente se celebrava no dia 16 de maio. Houve desfile e fanfarra compostos principalmente por meninas, a maioria membros da Pia União das Filhas de Maria, que saiu da praça da Catedral de São Sebastião rumo à capela, onde se celebrou a memória da santa. É notório que a presença da Igreja naquela localidade mudou a percepção sobre a periferia, visto que as obras de calçamento e arborização da Avenida Primeiro de Maio logo foram executadas pela municipalidade.

Grande celebração da festa litúrgica de Santa Maria Goretti (1954). Fonte: Arquivo paroquial.

Havendo as condições para principiar a edificação, como os fundos recolhidos, as missas dominicais e a catequese dirigida pelas Irmãs Missionárias de Jesus Crucificado, Dom Luís convocou a diocese para o lançamento da pedra fundamental da igreja de Santa Maria Goretti. No dia 06 de junho de 1954, reuniu-se na Vila Virgínia o povo do bairro ao redor do bispo: “a santinha, que era plebeia e humilde, sentir-se-á muito contente no meio daquela gente operária” (DIÁRIO DE NOTÍCIAS 06/06/1954) era a ideia que constantemente se afirmava. Além dos habitantes do bairro, que eram as principais figuras daquela celebração, estiveram presentes também o prefeito Alfredo Condeixa Filho, o vice-cônsul de Portugal Manuel dos Santos Freire, além dos delegados, juízes e vereadores da cidade. O 3º Batalhão da Guarda Civil ficou responsável pela música cerimonial, assim como disparou 14 tiros de morteiro relembrando as feridas sofridas por Maria Goretti.

Início da construção da nova igreja (1955). Fonte: Arquivo paroquial.

Os trabalhos realizados em favor da construção da igreja geraram o que se chamou, naquele período, de “clima gorettiano”, que era o sentimento pleno de confiança em Deus aliado ao sentido comunitário do serviço para a Igreja. Desse modo, o bispo enfatizava a importância daquela obra na Vila Virgínia. Socialmente, havia a integração de necessitados e abastados, espiritualmente, representava a escolha “entre a corrupção do mundo contemporâneo e a mensagem salvadora de Cristo” (DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 06/06/1954) e eclesialmente, via-se crescer a presença da Igreja em um ambiente no qual antes não se tinha muito acesso.
As obras que erigiram a igreja demoraram quatro anos, tendo sido interrompidas apenas uma vez devido à falta de materiais. As atividades pastorais, no entanto, nunca deixaram de ser realizadas: durante a construção, mesmo com a estrutura incompleta, sem teto nem acomodação, as missas eram celebradas e o catecismo era ensinado aos homens, mulheres e crianças do bairro. As celebrações da festa da padroeira ocorriam de forma grandiosa na chamada “semana gorettiana”. Aos poucos, a igreja ia tomando o acabamento necessário para sua solene inauguração.

Em 1958, o bispo convocou a Semana da Presença, evento cujo objetivo era celebrar o cinquentenário da diocese, na perspectiva da atualização e da unidade, pilares de seu governo episcopal. Entre os dias 01 e 08 de junho haveria pregações nas matrizes de todas as cidades do território diocesano, nas quais se ensinaria sobre as noções de Igreja, fé e apostolado. Um dia antes do início da mencionada Semana, chegou a notícia de que o Papa Pio XII havia elevado a Igreja de Ribeirão Preto à arquidiocese e nomeou Dom Luís o seu primeiro arcebispo, de modo que a comemoração se intensificou.

Inauguração da igreja. Fonte: Arquivo paroquial.

Então, no dia 07 de junho de 1958, durante as atividades que memoravam a criação da diocese e a recente elevação à arquidiocese, ocorreu a inauguração da igreja e a instalação da Paróquia de Santa Maria Goretti, que se tornou, oficialmente, a padroeira do bairro. A missa foi rezada pelo arcebispo, a quem se deveu a ideia da igreja no bairro periférico e que insistentemente apoiou as obras.

Vila Virgínia. Fonte: Arquivo paroquial.

A Vila Virgínia, desse modo, desenvolveu-se com a marca do catolicismo. Foi por causa da igreja de Santa Maria Goretti – e da paróquia, criada no mesmo dia – que o bairro passou a receber as obras necessárias para o melhoramento das condições de sua população. A santa, cuja vida muito se assemelhava à daquelas pessoas, representou o cuidado da Igreja para com os mais necessitados e, por isso, a ela passaram a devotar sentimentos de gratidão e amabilidade, que permanecem ainda hoje, de geração em geração, depois de 65 anos.

Bruno Paiva Meni
Arquivo Metropolitano “Dom Manuel da Silveira D’Elboux”

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