A Pontifícia Comissão para a América Latina, em sua reunião plenária de março de 2016, tratou do tema: “O indispensável compromisso dos leigos católicos na vida pública dos países latino-americanos”. No final desta reunião plenária, o Papa Francisco enviou uma carta ao presidente desta referida Comissão, na qual, a certa altura, perguntava: o que significa de fato de que os leigos estejam trabalhando na vida pública?
Dizia ao Papa: Hoje muitas de nossas cidades se tornaram verdadeiros lugares de sobrevivência. Lugares nos quais se instalou a cultura do descartável, que deixa pouco espaço para a esperança. Nelas encontramos nossos irmãos imersos na luta, com suas famílias, que procuram não apenas sobreviver, mas, no meio de contradições e injustiças, buscam o Senhor e desejam dar-lhe testemunho. O que significa para nós, pastores, o fato de que os leigos trabalhem na vida pública? Significa o modo de poder encorajar, acompanhar e estimular todas as tentativas e esforços que atualmente já se fazem para manter viva a esperança e a fé em um mundo cheio de contradições, especialmente para os mais pobres, particularmente com os mais pobres (…) Não é o pastor que deve dizer ao leigo o que fazer e dizer, ele sabe tanto melhor que nós. Não é o pastor que deve estabelecer o que os fiéis devem dizer nos diversos âmbitos. Como pastores, unidos ao nosso povo, faz-nos bem nos perguntarmos como estamos estimulando e promovendo a caridade e a fraternidade, o desejo do bem, da verdade e da justiça. Como podemos fazer para que a corrupção não se aninhe nos nossos corações.
Nas reflexões conclusivas desta reunião plenária ressalta-se entre outras coisas que se a Igreja enquanto tal não lhe corresponde reduzir sua missão à política, aos cristãos leigos lhes compete primordialmente viver o seu batismo, crescer no Senhor, dar testemunho da fecundidade transformadora e construtora do Evangelho, sua riqueza de humanidade nova, nos quadros da própria vida pessoal, familiar, profissional e política. Corresponde aos cristãos leigos impregnar de espírito cristão as leis, os costumes, as estruturas e ambientes de convivência na ‘polis’. Sua contribuição singular e indelegável é participar nas responsabilidades cidadãs, na dialética democrática, para transformar o mundo segundo o Evangelho de Cristo.
Após o Concílio Vaticano II, os ensinamentos preciosos e sempre atuais das Constituições conciliares, especialmente no fio condutor da Lumen Gentium e Gaudium et Spes, com seu complemento do Decreto Apostolicam Actuositatem, assim como a Exortação Apostólica pós-sinodal Christifideles Laici, ajudaram os cristãos leigos a aprofundar sua dignidade batismal, identidade cristã, participação no sacerdócio, realeza e profecia de Cristo, sua plena participação na Igreja, cuja contribuição singular para a evangelização é ordenar e transformar as estruturas da convivência social para a plena manifestação do Reino de Deus.
Nas reflexões conclusivas também se constata certo déficit de presença. Sem dúvida, somos interpelados pela “ausência notável” de presenças e vozes significativas e coerente de líderes católicos nos âmbitos políticos, acadêmicos e de comunicação na América Latina. Assim dizia o Papa Bento XVI ao inaugurar a V Conferência do Episcopado Latino-Americano e do Caribe em Aparecida e o confirmavam os próprios bispos presentes. Como é possível que, em um continente de grande maioria de batizados, em que o Evangelho está ainda muito enraizado na vida e na cultura dos povos e nações, se dê déficit de presença?
Ao analisar esta carência de presenças relevantes e coerentes, temos compartilhado diversas hipóteses para explicá-la. Na base há certamente um déficit na compreensão da fé, que não se vive como encontro com Cristo que abraça todas as dimensões da existência pessoa e coletiva, mas a participação é reduzida a alguns episódios de culto, adesão aproximada a algumas doutrinas e preceitos morais, a um espiritualismo abstrato e evanescente. Assim se incuba o divórcio entre a fé e a vida, de que falou o Concílio Vaticano II. A vida da pessoa se divide em compartimentos estanques: um deles, o religioso, não se comunica com os outros.
Que este texto nos ajude em nossa reflexão neste tempo que antecede eleições municipais e de Pacto pela Vida e pelo Brasil (CNBB).
Fonte: “O indispensável compromisso dos leigos na vida pública dos países latino-americanos”, Edições CNBB, Documentos da Igreja – 31.
Dom Moacir Silva
Arcebispo Metropolitano
Boletim Igreja-Hoje – Setembro/2020